Fome entre os Guarani e Kaiowá: “Criança chora, não aguenta mais. Sofrimento mesmo. Quase comendo terra”
Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi
Sem a terra tradicional, resta a fome para ao menos 40 comunidades Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Em acampamentos improvisados, às margens de rodovias, estradas de terra ou entre lavouras de cana e soja, nas retomadas – áreas não regularizadas e sob conflito – os indígenas não recebem cestas de alimentos desde novembro.
“Criança chora, não aguenta mais. Sofrimento mesmo. Tão fraco mesmo. Quase comendo terra. Precisamos de um apoio. Vou sair pra ver o que consigo porque vai morrer aqui. É desespero, não vai aguentar”, desabafa Gilmar Guarani e Kaiowá, morador da retomada de uma área localizada na Fazenda Madama, em Kurusu Ambá. Por ali vivem cerca de 80 crianças.
Até dezembro de 2014, cerca de 14 mil cestas eram levadas às comunidades por força de um Acordo de Cooperação Técnica do governo federal. Com a não renovação do acordo, desde 2015 o número despencou para no máximo 2 mil. “100% das famílias indígenas do Cone Sul eram atendidas. Não é mais assim”, explica Silvio Raimundo da Silva, agente indigenista da Funai de Dourados.
Hoje se trata de uma ação emergencial tocada pela Conab. “As cestas, na verdade, deveriam ser substituídas por políticas públicas estruturantes. Agricultura, mercado de trabalho, geração de renda. Acontece que a redução das cestas ocorreu, mas não foi acompanhada por outras políticas. Houve um descompasso”, analisa o indigenista.
As lideranças indígenas apontam que este descompasso se dá pela paralisação das demarcações. “Tamo debaixo de lona, entre fazendas de soja, cana e gado. Só o espaço pros barracos. Plantar fica difícil. Dividimos aquilo que conseguimos e quando a fome aperta nas crianças, o jeito é botar pra dormir”, explica Elizeu Guarani e Kaiowá.
Fome e Insegurança Alimentar
Elizeu é membro da Aty Guasu, principal organização política do povo, e mora no tekoha – lugar onde se é – Kurusu Ambá. A comunidade compõe os estudos do relatório Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição Guarani e Kaiowá (2016). A pesquisa é da Fian-Brasil com o Cimi e abrange ainda os tekoha Guaiviry e Ypo’i.
“Pedaços de terras que as comunidades ocupam dentro de seus territórios tradicionais estão dominados por monoculturas das fazendas, cujo cultivo demanda o uso excessivo de agrotóxicos (…) risco à saúde, à vida, representando também uma violação ao direito humano à alimentação, nutrição e água”, diz trecho do estudo.
São mais de 100 domicílios nos três tekoha pesquisados – 46% dos moradores e moradores tinham menos de 15 anos. No momento em que os pesquisadores realizaram as entrevistas (2013), em 75 destas casas os jovens residentes dependiam da família para se alimentar.
De acordo com critérios internacionais de Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas (Dhana), 13,3% dos domicílios (10) apresentaram insegurança alimentar leve; 58,7% (44) insegurança alimentar moderada e 28% (21) insegurança alimentar grave. Conforme o PNAD/IBGE (2013), em domicílios menos de 18 anos a insegurança alimentar grave atinge 4,8% das famílias brasileiras.
“A fome é resultado da expulsão das terras e de outros fatores que são causados pela violência gerada pelo atual modelo de produção de alimentos, enquanto a má nutrição resulta da fome, da baixa qualidade, da redução da diversidade e da contaminação dos alimentos, da inadequação das condições de saneamento”, diz trecho do diagnóstico.
“Não pode plantar” e um TAC do MPF
Gilmar Guarani e Kaiowá explica que a Funai e o Ministério Público Federal (MPF) tentam intermediar um acordo com os proprietários da Fazenda Madama, incidente sobre o território indígena, para que permitam a plantação dos indígenas. “Não pode plantar. Outros lugares não pode pegar água no açude. É assim”, diz o indígena.
“Com a redução no número das cestas de alimentos passamos a indicar como prioridade os lugares com mais vulnerabilidade: as áreas retomadas. Como a recuperação de territórios segue ocorrendo, e a quantidade de cestas diminuindo, tem uma defasagem”, salienta o coordenador da Funai em Dourados, Vander Nishijima.
A distribuição da Conab de cestas ocorre em seis etapas, com um intervalo médio de 60 dias. Com uma quantidade muito menor de cestas, 60 dias viram 120 para a fome de quem está com a barriga vazia. “Existe o entendimento do MPF e nosso, da Funai, de que o estado tem programas para contribuir com a alimentação”, diz Nishijima.
Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi celebrado entre o MPF, a Funai e o Governo Estadual do Mato Grosso do Sul, no ano passado. A Secretaria de Assistência Social se comprometeu a pavimentar caminhos para o auxílio e levantar famílias indígenas que já participam do Programa Vale Renda.
Aos não-indígenas, o programa oferece uma ajuda em dinheiro. Para os indígenas, em alimentos. No TAC, a Secretaria se comprometeu a até este mês de janeiro ter tudo detalhado para seguir com o cronograma. “Hoje temos algo temporário, o governo estadual tem condições de levar alimentos de modo permanente”, conclui Nishijima.
Bloqueio de estrada e Consea
Em Naviraí, os Guarani e kaiowá bloquearam por três dias, no final do ano passado, a BR-163. Na pauta a questão da falta de comida e a fome. “A Polícia Federal nos ligou perguntando se tínhamos como levar alimentação. O Cimi e outras entidades arrecadam de forma permanente”, explica Matias Benno, missionário do Cimi.
O indigenista explica que os casos de desnutrição são sistemáticos: “Em Pyelito Kue quase todas as crianças já receberam algum tipo de tratamento envolvendo as consequências da desnutrição. Já houve óbitos. As áreas não regularizadas são disparadas as que mais concentram casos”.
Não há nada de novo ao governo federal. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) fez dez recomendações aos poderes públicos referentes ao quadro dos Guarani e Kaiowá. As propostas foram elaboradas e aprovadas como resultados da missão ao MS realizada entre agosto e setembro.
“As áreas de retomada e acampamentos estão em situação de maior vulnerabilidade e insegurança alimentar e nutricional grave que as demais da região, visto que as terras não estão demarcadas, não acessam as políticas públicas que dependem da regularização e que não são autorizadas a cultivar plantio de alimentos”, diz o Consea.
Há poucos metros da sala da Presidência da República, no Palácio do Planalto, o Consea abordou o acesso dos Guarani e Kaiowá aos alimentos, os impactos de programas sociais, qualidade, quantidade e regularidade das cestas básicas, o acesso à água, documentação e questões relacionadas à demarcação das terras.
Mobilizações artísticas, políticas e doações de alimentos
Priscila Anzoategui é jornalista, advogada, militante, mãe e integrante do Coletivo Terra Vermelha (CTV), organização de Campo Grande (MS). Ativista da causa indígena, a militante percorreu todas as comunidades Guarani e Kaiowá em situação de fome e insegurança alimentar. Percorreu, inclusive, levando carros e carros com doações.
Não se trata, porém, de assistencialismo. “Lá no Tey’i Jusu, Guaiviry, e outros, a gente sabe que os Guarani e Kaiowá querem plantar e estão fazendo de tudo pra voltar a ter essa independência, mas enquanto fazem essa transição precisam das cestas”, explica Priscila. O diálogo com caciques e lideranças é constante.
“Agora em Kurusu Amba, em especial no acampamento do Gilmar, toda vez que a gente vai é essa situação de miséria. No ano passado quando fui levar os alimentos tava bem frio e as crianças descalças. O CTV leva roupas também, e já ajudamos com material escolar”, afirma.
Para conseguir as doações, de um modo geral, o Coletivo articula apresentações artísticas em Campo Grande, faz intervenções políticas e conta com apoios diversos. “As lideranças entram em contato com a gente e tentamos fazer tudo rápido. Uma arte da campanha, escolhe um ponto de arrecadação e começa a difundir”.