CARTA PARA OS AMIGOS 23.08.14

Caríssimos amigos,

Acabei de voltar da Itália onde tive que enfrentar uma série de visitas e exames e no final tive uma surpresa inesperada.

2014 é para mim um ano que iniciou com projetos e sonhos, mas está seguindo com surpresas, dificuldade e frustrações.

Em janeiro a minha agenda estava cheia, incluindo, entre outros projetos,a abertura de uma nova missão em Oiapoque, articulada com as igrejas de Caiena e Paramaribo na Guiana Francesa e Suriname. Oiapoque é o município mais ao norte do Brasil, na fronteira com a Guiana Francesa e próximo da holandesa e da britânica.

Esta missão é a resposta do regional Norte 2 ao tráfico humano de mulheres e crianças e ao trabalho escravo que atingem a população mais humilde. É uma missão nova, tanto na abrangência geográfica como na metodologia. Em junho já enviamos, como experiência, dois missionários que permaneceram até o começo de agosto na aldeia de Kumarumã, dos índios Gailbi-Marworno no município de Oiapoque. Estava prevista a abertura da missão no final de outubro. mas houve mudança. Em 2015 vão permanecer em Oiapoque um padre oblato com muita experiência e o leigo Peterson, da Bahia. Terão que conhecer e estudar a situação e iniciar a articulação com Caiena e Paramaribo, com o apoio dos bispos e a ajuda de outros oblatos que atuam na diocese de Caiena, com os brasileiros.

É a Igreja que se desloca nas periferias para condividir a situação precária dos nossos irmãs e irmãos. É uma missão perigosa porque, tratando-se de prostituição, drogas e trabalho escravo. o dinheiro que corre é contado em bilhões de dólares.

Continua a missão entre os Povos Indígenas, principalmente no município de Oiapoque e no sudeste do Pará. Para esta missão escolhemos duas prioridades: ajudar na resposta as mudanças culturais que a modernidade produz e valorizar os ministérios dentro da Igreja.

No primeiro campo procuramos ajudar as comunidades atingidas com a reflexão sobre as mudanças que acontecem recentemente e que ameaçam destruir a própria tradição. Fazemos isso apelando para a tradição de cada povo e ao Evangelho.

Na permanência em Roma durante o mês de julho, para cuidar da saúde, tive ocasião de trocar idéias com padre João Dilenarda, cuja missão se realiza na ilha de Goodnough em Papua, Nova Guiné e com padre Claudio Corti que atuou em Tailândia junto aos povos nativos: Akha, Lahu e Lisu e eu na missão entre os povos nativos da Amazônia brasileira. Falamos das mudanças culturais que se verificaram nos últimos 10-20 anos. Parece impossível como, apesar da grande distância e da diversidade cultural destes povos, as mudanças que ocorrem seja tão parecidas, mesmo nos pormenores. O chamado progresso, o acesso ao dinheiro e seu uso; a aumentada facilidade de contato com outras sociedades; a chegada da eletricidade e, com ela, da televisão e do freezer, do celular e, sempre mais frequente, o acesso a internet, mudam as pessoas por dentro: muda a maneira de pensar e de agir.

É importante que as comunidades e as pessoas interessadas tomem consciência das mudanças que acontecem. É importante que avaliem as consequências no estilo de vida, principalmente na juventude. É isto mesmo que queremos? Temos certeza que é este o caminho que nos torna felizes? Se não é este, quais as alternativas que temos? Temos que recusar todas estas inovações da modernidade e nos fechar em nosso mundo? Queremos ficar isolados?

Nesta situação procuramos recuperar a cultura e a tradição dos antepassados. Confrontar, evidenciar as mudanças e distinguir entre o que pode mudar sem prejuízo e o que deve ficar, mesmo com roupagem diferente. Como aceitar as mudanças e conservar os valores da nossa tradição? É possível? O que podemos aceitar e o que devemos recusar?

Já que somos cristãos e queremos ser discípulos de Jesus, é importante também o confronto com o Evangelho. Qual a proposta de Jesus e como Ele viveu na sociedade daquela época? Como os cristãos do tempo dos apóstolos viveram e enfrentaram as mudanças? Neste confronto, frequentemente descobrimos que a cultura dos nossos antepassados é mais em sintonia com o Evangelho do que a maneira de pensar e viver da sociedade moderna.

É lógico que a proposta é para a comunidade toda, mas uma reflexão mais profunda e a capacidade em reformular o projeto de vida si realiza somente com um grupo mais reduzido. Mas é importante que esta escolha seja conhecida e sirva de exemplo para todos.

Em vista de uma igreja indígena queremos também preparar os índios para que eles mesmos assumam os ministérios de que a comunidade precisa. É o tema da inculturação e da igreja indígena que precisa ser refletido e estudado.

Tínhamos deixado o mês de abril para trabalhar neste campo entre os índios Tiriyós e Kaxuyana, na fronteira com Suriname, preparando alguns dirigentes para ser ministros dos sacramentos do Batismo e do Casamento. O pedido veio dos franciscanos da missão e da comunidade das irmãs, estimulados também por Dom Bernardo Johannes Bahlmann , Bispo da diocese onde se encontra a missão, Óbidos. Chegamos antes da Semana Santa. Participaram dirigentes índios de cerca 20 aldeias da região. Iniciamos com entusiasmo, mas na Sexta Feira Santa apareceu em mim uma febre quase a 40 graus. Irmã Rebeca assumiu o curso. O avião chegou 10 dias depois. Chegados em Belém, fui internado no hospital onde descobriram pneumonia e forte anemia, e detectaram uma infecção; apesar dos muitos exames não descobriram a causa da infecção. A febre, mesmo com temperaturas mais baixas durou dois meses. Estava prevista a ida para Itália, em julho, para controles anuais após a cirurgia em que me haviam extirpado um pulmão e um tumor em 2012 e aproveitei a ida para consultar alguns especialistas, mas sem resultado. Não encontraram a causa da infecção, que sarou por conta, mas descobriram um novo tumor que estava crescendo na parede do tórax, de onde tinham cortado o outro pulmão. Quando realizaram a biópsia, aproveitaram para remover uma boa massa de tecido cancerígeno.

Inicialmente pensaram em repetir a quimioterapia, mas depois a oncologia me prescreveu um remédio oral, usando o TARCEVA, que inibe a atividade da proteína que alimenta e faz crescer as células tumorais. Graças a Deus que este tratamento pode ser realizado no Brasil.

Foi um momento muito difícil para mim que tinha toda convicção de estar livre definitivamente do tumor. Repetia para mim e para os outros: “Estou sem um pulmão, mas também sem tumor!” E a dura realidade era: “Estou sem um pulmão e ainda com tumor!”

Custou um pouco para aceitar este fato e a reformular a minha vida; a minha preocupação era principalmente a missão. Coloquei-me diante do Sacrário e nos olhamos em silêncio. Os superiores, muito atenciosos, insistiam porque fizesse o tratamento na Itália. A Amazônia, de improviso tinha-se tornado perigosa e fonte de doenças. Eu dizia que tínhamos que consultar os médicos e a minha oncologista. Voltei para a oração de abandono de Padre Charles de Foucault, muito parecida ao Ato de Oferta das nossas orações ao meio dia. Rezei do fundo do meu coração. Como dois anos atrás me abandonei nas mãos do Senhor e da Virgem de Guadalupe e ao mesmo tempo pronto para enfrentar esta nova luta contra o mal. O que tinha que fazer, dia após dia diriam as circunstâncias, o meu físico e os médicos.

Nestes dias topei, no ofício, com a leitura de Rm 8,31 ss que muito me consolou e reanimou. “Quem pode nos separar do amor de Cristo?” Não será a doença de jeito nenhum, porque o amor de Deus é mais do que presente em minha vida. Porém a doença consegue separar muitas pessoas, mesmo devotas, do amor de Cristo. Devido à doença chegam a duvidar deste amor. Celebramos há pouco a festa da Assunção de Maria. Frente à mulher grávida está o dragão, cor do fogo, com sete cabeças e dez chifres cada uma, intencionando devorar a criança que estava para nascer. O pecado, a certeza da morte e o sofrimento são o dragão que quer destruir os nossos sonhos e a nossa esperança. Mas o condenado a morte é ele, o dragão. Nós somos vencedores em Cristo que venceu a morte. Num povoado perto de onde eu estava na Itália, Piancastagnaio, celebrei no ar livre a missa dos doentes. Ficamos em comunhão e pedimos a Deus que nos fizesse descobrir através da doença um tesouro, uma riqueza que Deus coloca a nossa disposição e nos torna participantes da cruz de Jesus e da redenção do mundo. Ele nos salvou assim: pela cruz. Santa Terezinha entendeu muito bem e com Cristo partilhou o crescimento do seu Reino. Por isso é padroeira das missões.

Com Paulo repetimos: “Somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos pela angústia; postos em apuros, mas não desesperançados; perseguidos mas não desamparados; derrubados mas não aniquilados; por toda parte e sempre levamos em nosso corpo o morrer de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa existência mortal” – 2Cor.8-10.

Repito a oração da missa do 20º domingo comum: “Acendei em nós a doçura do vosso amor, para que amando-vos em tudo e acima de tudo, corramos ao encontro das vossas promessas que superam todo desejo.”

Senhor! Dai-nos a certeza de que o que tu fazes e queres para nós supera qualquer sonho que possamos nutrir para nossa vida.