Caminhos abertos na teologia da revelação
Paulo Suess, Brasil
“A Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão de verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos ajuda a `amadurecer o juízo da Igreja´” (EG 40).
A tentativa de construir uma ponte entre a percepção da revelação cristã, que se formou no decorrer dos séculos, e a revelação de Deus no meio de todos os povos, aponta para o reconhecimento da subjetividade dos povos indígenas, para a inculturação de seu universo religioso e a descolonização da própria Igreja. Esse reconhecimento que procura tratar os povos indígenas não somente como destinatários da missão e da revelação cristã, mas também como interlocutores, não é algo exterior à normatividade do cristianismo, portanto, uma medida estratégica ou tática para defender a causa dos pobres e a dos povos indígenas, mas é inerente aos imperativos do Evangelho. O conceito da “revelação” não é propriedade de nenhuma denominação religiosa, mas todas as denominações podem definir esse conceito segundo a sua história, seu contexto e seus discernimentos.
1. Duas compreensões da revelação
Precisamos distinguir entre duas interpretações semânticas da palavra “revelação”, uma, específica, exclusiva, denominacional, e outra, genérica, inclusiva, macro ecumênica.
A pergunta, que nesse Simpósio paira no ar é aquela sobre a compatibilidade entre os dois conceitos que utilizam a mesma palavra “revelação” para duas leituras diferentes. Concretamente perguntamos: Entre os povos indígenas há revelação que envolve Deus ou é um uso indevido falar de suas sabedorias, inspiradas ou não inspiradas por Deus, de “revelação”?
Mas há outra pergunta, mais profunda, que está no ar, sobre a relevância dessa discussão para os povos indígenas. Vivemos um momento histórico, em que a vida dos povos indígenas em todos nossos países está, sistemicamente, ameaçada através da ocupação e exploração de seus territórios e da colonização e destruição de suas culturas.
Perguntemo-nos se nesse momento, a nossa discussão pode ser uma mera “questão teológica disputada” sem grande relevância para o fortalecimento das lutas que os povos indígenas estão travando pela sua sobrevivência, ou se conseguimos dar à questão da revelação um rumo que fortalece vidas ameaçadas em nosso continente. Se não é relevante para a vida, perdemos não só o nosso tempo, mas o nosso próprio futuro como Igreja. O Papa Francisco argumenta nessa direção quando afirma:
E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulando em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios (EG 207).
Está posta diante de nós a luta não pela instrumentalização, mas pela descolonização da teologia em favor da vida dos povos indígenas. A Teologia Índia, neste momento de colonização global das culturas, é uma bandeira de descolonização da Teologia. E para este fim procuramos mostrar que os outros e os pobres deste continente não são apenas destinatários da revelação cristã, mas também portadores da revelação de Deus e interlocutores da missão.
Voltemos para as duas compreensões da revelação.
– Uma compreensão é aquela que está presente nos escritos do Antigo e do Novo Testamento. Esta “Revelação 1”, segundo a compreensão de setores da Igreja católica, estaria fechada com a morte do último apóstolo. Neste caso, “caminhos abertos” não poderia se referir a acréscimos, mas somente a interpretações posteriores dos textos contidos na Bíblia. A Igreja nos diz que essa revelação é suficiente para alcançar a vida eterna. Nós cristãos, a rigor, não precisamos de outras revelações fora daquela que nos foi dada em e através de Jesus Cristo, o “enviado do Pai”, e que está contida em nosso livro sagrado, a Bíblia.
– Uma outra compreensão – a “Revelação 2” -, que está muito presente no diálogo inter-religioso, argumenta assim: “nós não podemos impor limites à vontade de Deus de falar como `outrora´, porque já antes desse `outrora´ Deus falou através do livro da criação, pela razão e intuição, por fenômenos naturais ou históricos, e continua falando até hoje através de pessoas, acontecimentos e descobertas”.
Para construir uma ponte entre a Revelação 1 e 2, escutemos o início da Carta aos Hebreus:
Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo. Ele é o resplendor da glória do Pai, a expressão do seu ser. Ele sustenta o universo com a sua palavra poderosa (Hb 1,1s).
Como ele falou outrora, na Bíblia? Através de sonhos, visões, palavras proféticas, anjos e mensageiros históricos. Na condição messiânica e escatológica dos “últimos dias”, Jesus histórico é a última palavra de Deus. Pela amarração da “criação do universo” com os “últimos dias”, a palavra do Filho é protológica e escatológica. O Filho é herdeiro, mediador e sustento do universo.
Mas, a premissa da “última palavra” – por causa do chamado “retardamento da Parusia” – não se cumpriu, porque também os “últimos dias”, que explicariam, por causa do fim da história, um silêncio posterior de Deus e um ponto final da revelação, não foram os “últimos”. Continuam até hoje. O fim da história não aconteceu. E talvez o último apóstolo não morreu porque os apóstolos continuem vivos através dos seus sucessores. E por isso Deus continua falando, como outrora, por profetas, sonhos, descobertas, na cruz e ressurreição de cada dia e pelo magistério dos sucessores dos apóstolos.
2. A revelação através dos pequenos
Deus está presente no Universo e na humanidade como criador e redentor. Ele está presente segundo a sua própria palavra:
– onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome (Mt 18,20),
– nos samaritanos que cuidam daqueles que caíram na mão de ladrões (Lc 10,30-37),
– e na identificação com os menores como irmãos e irmãs (Mt 25,40). A transmissão não ideológica da revelação é garantida pelas vítimas da história e os desfavorecidos da sociedade.
Os lugares dos “pequenos” são lugares da revelação de Deus, mesmo antes que Jesus chegou a esses lugares. Quando os setenta e dois discípulos missionários voltaram alegres da missão, Jesus
exultou no Espírito Santo e disse: `Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos´ (Lc 10,21, cf. Mt 11,25).
Antes que a pregação dos discípulos e do próprio Jesus chegaram, “estas coisas” já foram reveladas aos “pequeninos”.
O que significa “estas coisas”? Os pequenos, os pobres, os crucificados da história são portadores da sabedoria divina e já receberam a revelação necessária para a construção do projeto de Deus que é o Reino. Receberam a revelação não por causa de sua pertença religiosa ou por causa da passagem de missionários e missionárias, mas devido ao seu estatuto social de “pequenos”. E quem não reconheceria muitos dos povos indígenas nesses “pequenos”?
Na “ação do Espírito Santo”, Jesus invoca Deus como Criador do universo e Pai, e exulta de alegria. As duas afirmações universais, nesse trecho, são que Deus é criador do universo e que sua revelação desde os primórdios da humanidade foi feita não aos “sábios e prudentes”, mas aos “pequenos”.
Jesus de Nazaré escolheu os pequenos-outros como protagonistas de seu projeto, que é um mundo para todos. Em seus discursos axiais da Sinagoga de Nazaré (Lc 4), das Bem-aventuranças (Mt 5) e do Último Juízo (Mt 25), Jesus é muito claro. Os primeiros e privilegiados destinatários de sua palavra, os protagonistas e o núcleo central de seu projeto, que é o Reino, são as vítimas e os “naturalmente” desfavorecidos. As vítimas não são apenas protagonistas ou destinatários do projeto de Deus, são também representantes de Deus no mundo e, como tais, portadores e mediadores de sua revelação e promessa. A Igreja só tem uma doutrina suficientemente verdadeira na proximidade aos pobres. Existe uma vinculação entre verdade e o encontro com a pobreza.
No encontro, dia 29 de agosto de 2013, com jovens da diocese italiana de Piacenza-Bobbio, na Basílica de São Pedro, o Papa Francisco deu também à verdade essa dimensão pentecostal do dom do “encontro” e do “achado”: “A gente não tem a verdade, não a carregamos conosco, mas a gente vai ao seu encontro. É o encontro com a verdade, que é Deus. Precisamos procurá-la”, às vezes jogada na lama (cf. EG 49).
Num belo texto, o então Cardeal Ratzinger escreveu: “A pobreza é a verdadeira aparição divina da verdade” . Os pobres são o lugar da epifania e revelação de Deus. Neles, a Igreja reconhece “a imagem de seu Fundador pobre e sofredor” (LG 8c). O Vaticano II não só fez a leitura da solidariedade como encarnação (cf. GS 32). Fez também a leitura da solidariedade como reconhecimento salvífico do mistério religioso que envolve os povos (LG 16). Em sua Historia de las Indias, Las Casas recorda-se desde a longínqua Valladolid: “Deixei nas Índias Jesus Cristo, nosso Deus, açoitado, afligido, esbofeteado e crucificado, não uma, mas mil vezes, pelos Espanhóis que assolam e destroem aquelas gentes (…).”
3. A revelação definitiva é escatológica
Para Jesus de Nazaré, a revelação está na inusitada compreensão da loucura de Deus como verdadeira sabedoria. Toda sabedoria de Deus que nos revela através de parábolas seu projeto, que é o Reino de Deus, tem um horizonte escatológico. O próprio Jesus, cuja presença histórica é ponto central da revelação, só pode ser compreendido no horizonte da revelação definitiva na Parusia e de uma humanidade libertada das contingências históricas e culturais. Concretamente pode-se afirmar:
– Desde os primórdios, a revelação de Deus Criador é reconhecida em todos os povos, suas culturas e religiões. “Deus proporciona aos homens, nas coisas criadas, um permanente testemunho de Si (cf. Ro 1,19s)”.
– A revelação mais específica em Jesus Cristo é histórica e culturalmente transmitida e, portanto, assumida em condições de precariedade e ambivalência. Na Parusia, o Verbo que se fez carne será o Verbo de todas as línguas. Nesse Verbo universal todas as religiões se reconhecerão e também o cristianismo vai reconhecer Nele os anseios das religiões dos outros. Nesta perspectiva, a questão da verdade que é importante sobretudo para as religiões universais, não é posta de lado, mas colocada no horizonte escatológico do próprio Evangelho, e o cristianismo é libertado da confusão entre sua singularidade histórica com exclusividade anistórica.
– A revelação no fim dos tempos pode e deve ser esperada como revelação definitiva dos mistérios, tanto para os cristãos como para os seguidores de outras religiões. Para os cristãos, o sujeito da Parusia tem um dos múltiplos nomes que a humanidade deu a Deus, Jesus Cristo, que significa, Deus Salvador e Messias. Na perspectiva escatológica que deve ser pensada como fim dos tempos e fim das diferenciações culturais, pode-se falar de uma coincidência dos opostos, de uma coincidência das revelações de uma verdade única.
Desde os primórdios da humanidade temos relatos sobre um Deus que se revelou de múltiplas maneiras à humanidade. Para enfatizar esse plural das revelações, recorremos a uma voz autorizada que afirma, que a patrística e os teólogos medievais, como Boaventura (1218-1274), desconheciam a pergunta sobre a “essência da revelação” única, no sentido dos tratados de Teologia Fundamental de hoje. A revelação é sempre uma abstração sintética de múltiplas revelações concretas que são formas específicas da experiência de Deus. Joseph Ratzinger, ainda em sua tese de livre docência escreveu:
Boaventura sabe e trata de muitas revelações pormenorizadas, que aconteceram no decorrer da história de salvação, mas ele nunca faz uma pergunta sobre a única revelação que aconteceu nessas múltiplas revelações.
Revelação, nesse contexto, é um ato concreto, um evento, no qual Deus se revela a um sujeito. A revelação, como ato de Deus que se dirige a pessoas, é anterior e maior do que aquilo que está fixado nas Escrituras. Além disso, precisamos levar em conta a contextualidade dessas Escrituras Sagradas. Paulo e João retomam compreensões tradicionais da revelação e numa nova interpretação teológica explicam o agir salvífico de Deus em Jesus Cristo para e a partir de um determinado público em contexto. Hoje, o discernimento eclesial tem que dar conta da articulação entre a revelação de Deus em Jesus Cristo e a continuidade das revelações na história e nas religiões não cristãs.
Jesus Cristo é não apenas aquele que veio, mas também aquele que virá, não somente como juiz, mas como revelador definitivo do Pai e doador da graça da unidade no Espírito Santo. Nessa perspectiva pode-se pensar o cumprimento definitivo do sentido profundo da revelação: tirar o véu das contingencias históricas. Deus vai tirar o véu de Seu mistério e todos verão a Deus face a face. A absoluta transcendência se tornará palpável na absoluta proximidade.
4. Abrir caminhos
A continuidade da revelação, além do núcleo sintetizado na Teologia Fundamental, não está em novos conteúdos, mas nas sempre novas experiências contextuais e históricas do Verbo Criador que continua relevante não só a partir da encarnação, mas também antes e depois dela, não só para os israelitas ou os cristãos, mas também para os que estão fora de Israel ou fora da Igreja Católica, como os samaritanos, os centuriões, a viúva de Sarepta e os leprosos, como Naamã, o sírio.
Na escuta de Deus, todos somos eternos aprendizes, discípulos missionários. Precisamos aprender dar ênfase à soberania de Deus, Salvador da humanidade, radicalmente encarnado na história e, ao mesmo tempo, radicalmente transcendente, aquém e além de todas as contingências culturais, religiosas e geográficas.
Quando nos assalta a vontade de arrancar todo joio da história através de definições e conceitos da “pura verdade”, a Igreja nos lembra do horizonte escatológico da revelação e o caráter relacional do encontro da verdade. Permanecemos aprendizes, na reciprocidade de dar ouvido, de receber a palavra e de ir ao encontro da verdade.
“Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade” (EG 116). Talvez vivemos hoje, com o Papa Francisco, um Kairós, que nos permite com coragem ampliar a tenda dessa catolicidade. Com Aparecida reafirmamos que “a Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11). “Coragem e fidelidade” eclesial permitam, que “o Espírito Santo embeleze a Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e presenteando-a com um novo rosto” (EG 116)!