O governo é provisório, nossos direitos são originários: não à revogação de demarcações!
Os direitos constitucionais dos povos indígenas do Brasil estão sob sério risco de retrocesso. O governo interino de Michel Temer, sob pressão da bancada ruralista – interessada em permitir a exploração econômica das terras tradicionais dos povos – sinalizou que pode, a qualquer momento, revisar e até revogar os relatórios, as portarias declaratórias e as homologações de terras indígenas publicados recentemente pelo governo de Dilma Rousseff. Essa indicação, além de perpetuar a dívida histórica do Estado brasileiro com os povos indígenas, é flagrantemente inconstitucional.
Dias após a abertura do processo de impeachment ser aprovada na Câmara Federal, parlamentares da bancada ruralista estiveram com o vice-presidente Michel Temer no Palácio do Jaburu e a ele entregaram a conta: entre reivindicações como a readmissão de formas de trabalho análogas à escravidão, o fim do licenciamento ambiental e a exploração desenfreada da biodiversidade brasileira, os ruralistas também exigiram a revisão das demarcações de terras indígenas e o tratamento das retomadas de terras tradicionais feitas pelos indígenas como casos de segurança nacional, com envio do Exército para áreas consideradas como de “risco” de ocupações por estes povos.
Em recente declaração à imprensa, o novo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, afirmou que todas as portarias do Ministério da Justiça (MJ) seriam reanalisadas, inclusive as Portarias Declaratórias de terras indígenas, que teriam sido publicadas “no apagar das luzes” pelo governo Dilma. Tal afirmação não poderia ser mais equivocada: os povos que desses territórios dependem para sua reprodução física, social e cosmológica esperavam há anos, e até mesmo há décadas, por estes atos administrativos; e centenas de outros processos de demarcação de terras ancestrais ainda aguardam ações efetivas do Executivo.
No caso de uma portaria declaratória, de acordo com o Decreto 1775/1996, o Ministério da Justiça tem prazo de até 30 dias para definir um encaminhamento. Por exemplo, as terras indígenas Taunay Ipegue, do povo Terena (MS), e Irapuá, do povo Guarani Mbyá (RS), declaradas em abril e maio deste ano, respectivamente, aguardavam há quase uma década pela pubicação das portarias. A Justiça Federal chegou a determinar ao MJ uma definição sobre Taunay Ipegue, decisão a qual a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu judicialmente.
De janeiro até maio de 2016, o governo Dilma Rousseff homologou quatro terras indígenas, publicou doze portarias declaratórias e aprovou nove identificações, além de uma portaria de restrição envolvendo uma área de perambulação de povos indígenas em situação de isolamento voluntário. Mesmo com tais atos, o governo Dilma Rousseff, com Michel Temer como vice-presidente, configura como o que menos demarcou terras indígenas desde a redemocratização, em 1985. Ele nada mais fez do que cumprir, com longo atraso, o dever que lhe foi determinado pela Constituição Federal.
Também cabe ressaltar que os direitos constitucionais indígenas, no que diz respeito a seus territórios sagrados, são de cunho apenas declaratório: nenhuma terra indígena é criada por decreto ou portaria. Os atos administrativos de demarcação de terras indígenas, que a Constituição Federal de 1988 determinou que estivessem sob responsabilidade do Poder Executivo, apenas reconhecem a estes povos o direito originário a seus territórios tradicionais, por meio de um processo técnico de identificação e delimitação destas áreas, que inclui longas etapas e estudos científicos multidisciplinares e, na prática, sempre demora muito mais do que deveria.
O direito territorial indígena preexiste ao ato do Poder Executivo que o reconhece e declara. Por isso chamamos o direito dos povos indígenas às suas terras de “direito originário”. Não se trata, portanto, de ato decorrente de mero juízo de conveniência e oportunidade, mas sim, de ato estritamente obrigatório do Poder Público. Em recente entrevista, a subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, afirmou que atos administrativos de publicação de relatórios, portarias declaratórias e homologações de terras indígenas não podem ser simplesmente revistos ou revogados conforme a vontade política de um governo ou os interesses econômicos de um grupo: revisões deste tipo só podem ser realizadas diante da comprovação de algum tipo de vício insanável de legalidade. Caso contrário, são inconstitucionais.
Diante do atual contexto, no final do Acampamento Terra Livre (ATL), no dia 12 de maio, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou um manifesto em que declara: “Em razão de tudo isso, os nossos povos e organizações declaram publicamente a sua determinação de jamais desistir da defesa de seus direitos constitucionalmente garantidos, manifestando ao Governo Temer que não permitiremos retrocessos de nenhum tipo. Continuaremos empenhados e mobilizados em luta pela efetivação dos nossos direitos”.
As ações realizadas e anunciadas na primeira semana do governo interino de Michel Temer tiverem repercussão dentro e fora do Brasil. A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli Corpuz, em discurso na 15a Sessão do Fórum Permanente da ONU sobre as questões indígenas (UNPFII), que ocorre durante este mês de maio em Nova Iorque (EUA), criticou a extinção da Secretaria de Direitos Humanos e apontou a preocupação com o fato de interesses da elite brasileira serem privilegiados em detrimento dos direitos dos povos indígenas. Victoria define que estes povos estão sob um processo de genocídio no Brasil.
Os povos indígenas do Brasil, portanto, vivem hoje mais um decisivo capítulo da sua secular resistência para garantir não somente seus direitos constitucionais, tão tardiamente conquistados em 1988, como também a própria sobrevivência. Diante deste perturbador cenário, somente o fortalecimento desta resistência pode impedir o avanço das ofensivas à autonomia e aos direitos dos povos e garantir o cumprimento da obrigação constitucional de demarcar todas as terras indígenas no país. É fundamental também que esta resistência seja apoiada por uma ampla articulação com os diversos segmentos da sociedade brasileira comprometidos com a defesa dos direitos humanos.
Existem hoje 12 processos de homologação (importante etapa da demarcação das terras indígenas) e um decreto de desapropriação na mesa do presidente interino Michel Temer, sem qualquer impedimento judicial ou administrativo. Ou seja, não há qualquer disputa ou situação específica que impeça estas terras de serem homologadas. Do mesmo modo, seis portarias declaratórias (passo anterior à homologação) aguardam a assinatura do ministro da Justiça Alexandre de Moraes, também sem qualquer impedimento judicial ou administrativo. Os dois têm a obrigação constitucional de encaminhar esses atos administrativos, que são fundamentais à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas que habitam essas áreas.